Prazer & Amor. Ou a história de uma tatuagem/vida, parte IV

Almoçamos em cima de uma adorável toalha xadrez vermelha e branca. Me senti como que num sonho sépia, comendo aqueles sanduíches de salpicão com aquela loirinha elétrica e sua adorável e indiscutivelmente incomum mãe. Claro que Alice não estava comendo, para desespero de Anna. Ela simplesmente jogava pedaços de seu pão com salpicão para os pombos famintos que, por razões óbvias, não a deixavam em paz. Anna tentava espantá-los, mas Alice desfazia todo o seu trabalho, jogando mais pedacinhos de sanduíche para eles. E eu nem sabia que pombos eram carnívoros. Acho que alguém deveria tê-los avisado que ali tinha pedaços de galinha. Embora eu realmente ache que os pombos não ia se importar, at all. Longe de serem domesticados, ali era a guerra. Cada pombo por si, e todos pelo pedaço de pão que Alice estava jogando. Se havia pedaços de outras aves quaisquer, bem. Problema delas, eles que não ia deixar de encher o buchinho por causa disso. Realmente, quanto mais observo os animais, vejo o tanto que temos em comum com eles. O que é uma vergonha, já que somos supostamente racionais. Whatever. Alice nos abandonou assim que terminou de comer/dar comida aos pombos e correu para comprar mais pipoca para dar para os pombos sempre famintos. Eu fiquei a observar o lago do parque, meio esquecida de por que estava ali. Anna me lembrou, continuando a narrativa dela, enquanto me oferecia um pedaço de uma barra de Hersheys pela metade: – Quer? É ótimo, tem uns crocantezinhos dentro, uma delícia. Aqui ó. É meu chocolate predileto, esse. Hm. Então, onde foi que eu parei? Ricardo né? Ah, ainda falta muito, espero que você realmente esteja interessada nisso. E parou, como se esperasse minha confirmação. Assenti com a cabeça com vontade, para não deixar nenhuma dúvida e para que ela se adiantasse o quanto antes à narrativa. O que ela fez.

– Bem, então tá. O terceiro a ter sua inicial devidamente tatuada na minha nuca foi o Alexandre. Alexandre não chamava, à primeira vista, muita atenção. Ele era meio recluso e creio que, não fossem condições especiais, jamais o teria conhecido. Um dia, não sei por que, tive vontade de entrar numa livraria num bairro aqui pelos arredores. Era uma loja meio antiga, tinha uma vitrine tão diferente, cheia daqueles livros de capa dura vermelhos, verdes, pretos com letras douradas, que você simplesmente não vê mais por aí. E novos! Sempre quis ter um daqueles, achei que sempre elevavam as pessoas a um status intelectual diferenciado. Não pretendia lê-los, claro. Mas queria ter pelo menos um daqueles guardados, para situações de emergência, na qual eu tivesse que fazer alguma fita para parecer inteligente. Entrei na livraria e ela parecia inabitava, à primeira vista. Melhor, pensei, assim posso flanelar por aí sem ninguém atrás de mim, perguntando se pode ajudar. Então comecei a vagar pelos exemplares verdes. Gosto de verde, já disse? Não sei bem por que, mas o verde me dá uma sensação de liberdade. Mesmo naquela minúscula livraria. Achei um exemplar de Dostoiévski chamado Crime e Castigo, numa estante de madeira um pouco empoeirada. Não sei bem por que me senti atraída por aquele nome em especial, já que sequer tinha ouvido falar na história. Mas o nome do autor era tão diferente. E o título tão… sugestivo. Não sei, de alguma forma, foi instântaneo. Abri o livro e comei a folhear-lo, sem fazer idéia do que tratava aquele livro, mas mesmo assim sabendo não-tão-no-fundo-assim que eu ia levá-lo de qualquer forma. De repente, o susto. “Posso te ajudar?”, disse uma voz masculina grave bafejando na minha nuca e fazendo meus pelinhos arrepiarem. O livro caiu. Acho que em algum momento acabei por deixá-lo cair. No momento em que ele se abaixou para pegar meu livro – sim, era meu. eu ainda não havia pago por ele, mas ele já era meu, assim como eu já era parte dele – e pediu desculpas por ter me assustado, enquanto ajustava os óculos que tinha escorregado para a ponta do nariz, eu soube. Soube que ele seria meu novo alvo. Ele era bem diferente do que eu estava acostumada. Caras bonitos, eu digo. Alexandre não era bonito, mas tinha um charme próprio das pessoas que usam óculos maiores que o rosto e passam 99% do tempo com a cara enfiadas em papéis. E tinha um papo ótimo. “Em que posso ajudar, srta..?”, Alexandre falou, me devolvendo o livro verde. “Anna”, falei, com entusiasmo, me demorando a pegar o livro de propósito. Nunca fui boa em esconder emoções, embora tivesse saído ilesa até agora na minha empreitada. “Certo, Srta Anna. Se interessou por Dostoiévski? Esse livro é muito bom”, falou ele, sorrindo. “Você diria isso de qualquer forma”, eu disse, rindo. “Você precisa sobreviver, afinal”, continuei. Ele juntou as sobrancelhas numa cara de discordância: “Jamais, Srta. Essa livraria não é um meio de vida, até por que eu realmente morreria de fome, dependendo dela. O livro é realmente bom”, falou sério. E por aí foi, eu fazendo ele me contar a história toda do livro, fingindo-me em dúvida, apenas para ouví-lo falar sobre o livro daquela forma apaixonada que faziam seus olhos brilharem. Comprei o livro, óbvio. Mas só depois de fazê-lo me convidar a tomar um café comigo numa cafeteria próxima dali. É claro que ele se apaixonou por mim. Eu sei que sim, embora ele fosse tão mais discreto com isso do que os outros. Tive medo, de verdade, de criar problemas para ele. E talvez para mim mesma. Eu sabia lidar com o exterior, sim. Mas aquele tinha uma capacidade argumentativa bem capaz de me fazer desistir das minhas intenções. Principalmente se ele acreditasse que tínhamos algo diferente. Algo que valesse a pena.

Nossa primeira vez foi, obviamente, na livraria. Eu passava lá sempre antes de ir para faculdade, trazendo comida chinesa. Ele sempre reclamava, dizendo que eu vinha com esses molhos gordurosos melecar os amados livros dele. Eu estava sempre a competir com os benditos livros. Não ligava. A competição me fazia lembrar do meu objetivo. A não perder o foco, o que seria muito fácil, fazendo amor todos os dias – e várias vezes no dia – naquele tapete macio que cobria uma parte especial da livraria, onde encontrei meu Dostoiévski. Claro que ele também me proporcionou esse tipo de prazer, o sexual. Mas, além disso, ele me apresentou uma dimensão meio que subestimada por mim, o intelecto. Depois dele, passei a procurar pessoas que pudessem me oferecer mais do que apenas o prazer sexual, que era algo ótimo, sim. Mas não era tudo. Não mais. Não mais para ter sua inicial na minha nuca. Durou apenas 5 meses, tempo que levei para ler meu Dostoiévski. Não achei prudente continuar algo que poderia machucá-lo, meu doce intelectual, embora realmente me fosse difícil abandonar a idéia do amor matinal com café e alguns livros meio comidos por traças naquele tapete macio que já tinha um cheiro tão alexandrino. Não quis deixar meu coração a mercê dele, pois ele já havia conquistado meu corpo e minha mente. Pouco demoraria para ele tomar conta de tudo e se tornar o meu Grande. Ele, para grande espanto meu, chorou. Não pensava que ele tivesse realmente se apaixonado por mim, embora ele desse alguns sinais. Mas, enfim, só tinhámos 5 meses, ele se recuperaria. Ou foi o que pensei. Por via das dúvidas, nunca mais passei na rua daquela livraria. Você sabe, aqueles fins meio trágicos de Dostoiévski e tal, vai que ele ficava muito louco, sei lá. Só sei que tatuei a letra A e, a esse ponto, o tatuador nem se importava mais comigo. E não se oferecia mais para fazer 837 desenhos diferentes que ele julgava adequados para minha nuca. Apenas o que eu pedia. Vi que, afinal, talvez fosse possível educar os homens para quererem fazer apenas o que você quer que eles façam. Mas não no campo amoroso, infelizmente.

5 thoughts on “Prazer & Amor. Ou a história de uma tatuagem/vida, parte IV

  1. Ah, finalmente! Eu já estava morrendo de saudades do seu blog! Vc ficou um tempo fora, eu já tinha visto que vc tinha voltado e tal, mas demorei para comentar rsrs eu estou adorando a história, e já estou louca para ler a próxima parte! Beijão

  2. Preciso reler a parte 3, porque esqueci a história do Ricardo O_o
    E estou muito curiosa pra saber como acabará a história. Acho muito difícil levar a vida desta forma (até mais do que sair se apaixonando sempre), mas a história é muito envolvente e não vejo a hora de conhecer os demais e saber se pra Anna tudo isso valeu realmente a pena…
    Beijos

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